A vida de um pastor de ovelhas de Trás-os-Montes
Ao longo da nossa história temos calcorreado terras altas montanhosas onde nos vamos cruzando com pastores de cabras, ovelhas e vacas da raça arouquesa e barrosã. Sentimo-nos atraídos pela paz que estes lugares emanam, a longitude do horizonte, a serenidade destes pastores e a vigilância dos seus cães do ataque repentino dos poucos lobos que existem ou, por vezes de homens. Neste artigo vamos conhecer um pouco da vida de um pastor e a história da sua profissão.
Pastor de ovelhas transmontano de Maçores - Torre de Moncorvo
Fomos passar um fim-de-semana à região transmontana de Torre de Moncorvo para ver as amendoeiras em flor. No domingo pela manhã seguíamos em direção a Barca D'Alva, quando resolvemos parar para conhecer a aldeia de Maçores - Torre de Moncorvo. Andávamos a caminhar pelas suas ruelas quando a Rua da Estrada Principal foi tomada de assalto por um rebanho de ovelhas, conduzido pelo seu pastor e guardado pelos seus cães. Obedecendo a uma força irresistível, fomos atrás dele para a vertente do Monte Ladeiro, onde estivemos à conversa e conhecemos este homem. Nós também nascemos e crescemos numa aldeia e num tempo em que se vivia ainda como antigamente e dormíamos em colchões de palha que pontualmente tinham que ser retirada para compor novamente a cama ou mudar a mesma.
Rebanho composto por 75 ovelhas da raça autóctone Churra
Este pastor de ovelhas transmontano disse chamar-se António Júlio Pereira. Nasceu aqui em Maçores, tem 59 anos de idade, é casado e tem um casal de filhos maiores que moram nas redondezas. Disse-nos que sempre trabalhou nesta vida e consigo trazia um forte cajado de madeira, a sua merenda e água. O seu rebanho é composto por 75 ovelhas da raça autóctone Churra Galega Bragançana, que se espalharam pela encosta do Monte Ladeiro, onde se destacavam os magníficos carneiros, com retorcidos cornos, as ovelhas negras e as crias das ovelhas sempre junto das mães protetoras. Este pastor disse-nos que esta raça tradicional em virtude de produzir menos leite anda a ser substituída por outras mais produtivas.
Neste domingo este homem levantou-se às 08h00, deu de comer aos animais e ordenhou as ovelhas, depois retirou os animais da corriça e com ajuda dos seus três cães e uma cadela foi para os montes para elas pastarem. O leite produzido é vendido à Cooperativa Quinta Branca, que disse fazer o melhor queijo da região.
Quando era novo subia e descia as serras com garra, mas os anos passaram e as forças e saúde foram fraquejando, até a mulher o obrigar a ir ao médico e descobrir um grave problema que podia ter sido fatal e esteve relacionado com a pouca água que bebia quando no verão o calor aperta, já que por aqui o ditado diz, "9 meses de inverno e 3 de inferno".
As ovelhas negras do rebanho
Afinal o ditado popular "A ovelha negra da família" tem inspiração no comportamento das ovelhas negras dos rebanhos, porque estas duas não gostavam de se juntar às outras e permaneciam mais afastadas e com ar reservado. Será que têm alguma incompatibilidade, receberam algo a que não tinham direito ou comeram às escondidas a ração das outras? A sorte delas é o povo ser sereno porque se não, já tinham levado com o cajado, mas o português não é burro a história ensinou-o a ser paciente, mas lá vem o dia que leva tudo à frente.
Aldeia de Maçores apenas com dois pastores de ovelhas
As suas ovelhas atuais descendem dos primeiros rebanhos que o pastor criou há mais de 30 anos. Na sua aldeia atualmente há apenas o seu rebanho e outro com cerca de 40 ovelhas e algumas cabras. “Hoje não há quem queira guardar isto, porque a gente nova ninguém quer andar com isto e os velhos vão acabando, por isso é que os gados têm tendência acabar. Quando eu tinha os meus vinte anos havia aqui muitas cabradas e uns nove ou dez rebanhos de ovelhadas, mas tudo rebanhos grandes, com 140/150 animais e por aí fora.” Pastor António Pereira
Qual a função de um pastor de ovelhas
A função do pastor de ovelhas é guardar e proteger os animais, alimentá-los, tosquiá-los, levar os rebanhos para as pastagens e antigamente fazer a transumância. Neste função é ajudado pelos seus cães que também lhe fazem companhia e as protegem dos ataques dos lobos que ao contrário do que se pensa e segundo as nossas pesquisas ainda subsistem em Trás-os-Montes. Há uma simbiose perfeita entre três atores que se conhecem bem: o pastor que todos respeitam e obedecem pelas ordens verbais, gestuais, sinais como assobios ou força do cajado; os cães que mantém o rebanho em ordem e disciplina; e as ovelhas, que a todos obedecem sem protestar ou refilar. O pastor, à nossa frente, exemplificou dando um assobio e, em uníssono, as ovelhas olharam à espera, ansiosas da sua decisão. Estes atores representam a sua peça, seguindo os sinais e a energia que veio dos seus ancestrais e está gravada nos seus genes.
Os cães rafeiros que acompanhavam o pastor
Os três cães e uma cadela deste pastor, que disse ser a mais irascível, são rafeiros, embora nesta zona a raça autóctone seja o "cão de gado transmontano". Apesar destes cães não serem finórios verificamos que fazem bem o seu trabalho, com orgulho e tal dedicação que até pareciam humanas gentes. Muitos milénios de aprendizagem ensinaram aos canídeos como se posicionarem quando o rebanho está em movimento, ficando de atalaia e não permitindo emboscadas dos inimigos. Assim, as ovelhas não se dispersam e seguem corretamente o rebanho. Quando o grupo está parado, vão deambulando pelas suas extremidades ou simplesmente dormitando à sombra de uma oliveira, sempre com as orelhas à escuta e, por vezes, levantando o focinho para ver o que se passa.
O cão de gado transmontano
Nós tivemos o privilégio de fazer a maior parte do PR14 - Rota das Amendoeiras que começa na aldeia da Açoreira em Torre de Moncorvo, com a companhia de um dócil cão de gado transmontano que nos resolveu acompanhar depois de lhe fazermos festas junto à igreja local.
"O Cão de Gado Transmontano é o melhor amigo do pastor, pois além de guardar os rebanhos, possibilitando-lhe um maior rendimento, também lhe faz companhia ao longo dos árduos percursos de pastoreio. É um animal de grande porte, que tem como principal função, desde tempos imemoriais, a proteção dos rebanhos, na região de Trás-os-Montes.
Esta raça tem um comportamento dócil e reservado, apesar da grande corpulência. É um animal cauteloso sem ser agressivo, sempre muito calmo e de olhar sereno. Vive e convive com outros machos sem qualquer conflito, embora imponha uma hierarquia de dominância quando se encontra em grupos com fêmeas em idade de reprodução.
Num rebanho é muito raro haver só um cão. Os pastores preferem os machos, encontrando-se em número superior ao de fêmeas no acompanhamento do rebanho. Quando em contacto com pessoas estranhas e ultrapassada a reserva inicial, deixa-se manusear sem problemas, sendo muito sensível a bons tratos e atenções." (UTAD, 2005)
Cão de gado transmontano origem e história
"Os cães de gado, isto é, os animais que estiveram na origem das raças atuais, devem ter surgido na Península Ibérica ao mesmo tempo que a ovelha e a cabra doméstica. Estas últimas aparecem com registros arqueológicos datados do neolítico. O facto dos cães de guarda poderem ter surgido simultaneamente com os ovinos e caprinos domésticos, pode ser explicado pela necessidade dos rebanhos serem acompanhados por um cão de guarda, fruto da elevada vulnerabilidade que teriam aos ataques do lobo.
O Cão de Gado Transmontano representa um pouco da história viva de Trás-os-Montes e consequentemente de Portugal, fazendo parte do nosso património. Muitos consideram que esta raça é uma variedade de um possível Mastim Português. Contudo, o Clube Português de Canicultura considera que as condições climatéricas, ortográficas e tipo de pastoreio que se observam na região de Trás-os-Montes, acabaram por diferenciar estes cães de forma evidente.
As características pelas quais eram selecionados baseavam-se na cor, de preferência brancos, para que os pastores os conseguissem distinguir dos lobos quando viessem em seu auxílio. Quanto ao temperamento, os selecionados eram os mais corajosos, e deveriam ser grandes e fortes. Este cão pertence às poucas raças que ainda hoje desempenham o papel que lhes foi destinado inicialmente, sendo a sua origem muito semelhante à de duas outras raças de cães de defesa de rebanhos do nosso país, o Cão da Serra da Estrela e o Rafeiro do Alentejo. Contudo, o Cão de Gado Transmontano é o único que hoje em dia exerce a função de defesa contra o lobo, pois, ao contrário do que se pensa, o lobo ainda ocorre livremente na região transmontana. Sendo assim, esta raça desempenha uma função muito importante na economia transmontana, baseada na agro- -pastorícia, numa zona do país de baixa densidade populacional." (UTAD, 2005)
Descubra o cão nesta imagem
Quando deixamos este pastor o seu rebanho foi para outras pastagens e neste caminho tiramos a fotografia de cima e convidamos os nossos leitores a descobrir onde está o cão e pensarem porque razão se colocou num local tão estratégico e camuflado.
Conhecer as ovelhas pelos sinais - A ovelha "Malha Preta"
Enquanto falávamos com este pastor, a ovelha "Malha Preta" ouvia atentamente a conversa, voltando o pescoço consoante os interlocutores, palavra de honra como até parecia que queria participar no falatório. Já conhecemos e adoramos esta curiosidade das ovelhas, mas percebemos que, por aqui, os dias devem ser sempre iguais e nós éramos motivo de curiosidade. Algumas pareciam contudo ciumentas por termos roubado atenção "do seu homem".
"Conheço todos os animais do meu rebanho pelos nomes e sinais, como esta que está aqui agora a “malha preta”, ou uma outra por ser um bocadinho mais brava. Vamos supor que a senhora agarrava aqui em dez ou doze das minhas ovelhas e punha-as no meio de duzentas ou trezentas ovelhas doutro rebanho eu ia lá buscá-las a todas." Pastor António Pereira
O que é um pastor
"A classificação medieval para o pastor era a de Conhecedor ou Conhecedor das ovelhas, presente na Lei da Almotaçaria em 1253 (Ribeiro, 1857) e na Figueira e Barros em 1269 (Saraiva, 1997). Viterbo define-o como “O que conhece bem o estado e a qualidade de um rebanho ou vacada” (Viterbo, 1798).
Encontram-se ainda outras especializações: Ovelheiro, encontrado na Figueira, 1269; Entre-Tejo-e-Guadiana, 1362 (Rau, 1982); em Alcobaça no século XV (Gonçalves, 1989) e no Porto em 1431 (AMP). No livro de décimas de Arraiolos em 1643 tem as grafias Ouilheiro / obilheiro e na lavoura de Lopes de Azevedo, Avis, 1915-19, está classificado como ovilheiro – moural e Para guardar as ovelhas. Nos livros de doentes do Hospital da Misericórdia de Avis entre 1860 e 71 existe a categoria do Guardador de ovelhas.
Este termo pastor implica maioritariamente o guarda das ovelhas. Também pode indicar o porqueiro ou o cabreiro, mas são casos muito raros. Silva Picão (Elvas, 1903) define-o como o Ganadeiro dos lanígeros. Orlando Ribeiro salienta a importância da pastorícia na região mediterrânica, na qual praticamente todo o território português se inclui, mas com especial incidência para o Alentejo e as Beiras: “A ovelha e a cabra desempenham, na economia destas terras pobres, papel da maior importância: fornecem o leite, o queijo, a carne e a pele, a lã e o pelo. Uma indústria caseira típica de toda a região (Mediterrâneo) é a tecelagem de panos grosseiros, de mantas, tapetes e tapeçarias”, (Ribeiro, 1968).
O pastor propriamente dito também vem da época medieval a chega ao século XX como o resumo de todas as classificações referidas." (Almeida, 2002)
Homens pastores e mulheres pastoras ou dueiras
"Não há bicho pior para guardar do que a ovelha… Nem a cabra. (…) No meu tempo era só trabalho e porrada"
"No Alentejo esta profissão é exclusivamente masculina; no entanto, noutras regiões encontraram-se algumas Pastoras e Dueiras, mulheres que tomam conta dos rebanhos (Vasconcelos, 1933). Em Monsanto, por exemplo, o Romanceiro tradicional da região inclui esta personagem em vários poemas (Buescu, 1958). E no Ribatejo também se usava enviar rapariguinhas para o campo guardar ovelhas, segundo relata a Ti Elvira, avó do Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos, um dos mais populares romances de Alves Redol (1961): “Quando em pequena me mandavam para o monte com mais de trinta ovelhas, aprendi a conhecer os animais. (…) Mandavam-me para aquele degredo sozinha, e eu tinha de me calar, a comer pão duro com o molho dos olhos, que é o molho mais amargo que se pode comer. (…) Não há bicho pior para guardar do que a ovelha… Nem a cabra. (…) No meu tempo era só trabalho e porrada" (Almeida, 2002)
A transumância do gado
"Este autor descreve também a chamada “oscilação transumante”, um retrato de comportamentos ancestrais que ainda se verificavam nos anos 60 do século XX: “Durante o Verão, a erva seca nas terras baixas e há que procurar pastagens frescas na montanha; no Inverno arrefecem os cimos e cobrem-se de neve, e os rebanhos buscam abrigo e alimento nas planícies e nos vales. (…) Enquanto o pastoreio se confina à montanha, na maior parte dos casos acima dos limites da cultura permanente, aparta-se quase por completo da vida agrícola ou traz-lhe, com um pouco de estrume, ainda algum benefício. (…) os conflitos surgem, inúmeros e intermináveis, nos caminhos pastoris que passam perto das povoações e das culturas.” Estes movimentos transumantes de rebanhos verificavam-se entre a Serra da Estrela e Ourique, no Baixo Alentejo, no séc. XVII.
Nesta época, “a cultura dos campos ressent(ia)-se desta praga que, periodicamente, a montanha derrama nas terras baixas.” A situação dos pastores nas Beiras era bastante dura, devido a estas longas viagens durante o inverno inteiro, durante o qual saíam com rebanhos que incluíam reses de diferentes proprietários, e usavam as pastagens das terras mais a sul, por vezes em troca do estrume que as ovelhas lá deixavam." (Almeida, 2002)
A raça ovina Churra Galega Bragançana
"A ovinocultura tem desde sempre desempenhado um papel importante na vida das populações rurais, fornecendo benefícios em termos de alimentação, vestuário e fertilização dos solos para a agricultura. A raça ovina Churra Galega Bragançana, devido às suas características de elevada rusticidade e a fatores de natureza histórica e económica, fixou-se na região da Terra Fria Transmontana. Destaca-se pela sua grande capacidade de adaptação às condições adversas do meio onde se insere e pela produção de carne e de lã." (UTAD, 2005)
Origem e história da raça ovina Churra Galega Bragançana
"As raças churras autóctones têm, tradicionalmente, relações filogénicas com o Ovis aries Studery. A Churra Galega Bragançana não é exceção. Os ovinos da raça Churra Galega Bragançana caracterizam-se por serem animais de grande estatura, nos quais a altura do tórax e dos membros lhes confere um aspeto característico, designando-se por pernalteiros. Em tempos, eram explorados para a produção de lã, carne e fertilização do solo. Alimentavam-se de ervas espontâneas dos incultos e pousios associados a fracos recursos alimentares vindos de espécies arbustivas (estevas, giestas, urzes, tojos, silvas) e, como suplemento, dependendo das épocas do ano, recorria-se ao feno e grão de centeio ou cevada.
Mais tarde, devido à mecanização da agricultura e à opção por produções agrícolas diferentes das habituais, ocorreu uma diminuição das pastagens disponíveis. Consequentemente, verificou-se uma diminuição dos efetivos e os produtos passaram a ser, além dos já referidos, também o leite. Com a finalidade de aumentar a produção de leite e prolificidade efetuaram-se cruzamentos entre a Churra Galega Bragançana e a raça Frísia. Cruzando-a com Romney Marsh procurou-se aumentar a produção de carne.
Produção de leite: nesta raça a aptidão leiteira não é explorada. No solar da Galega Bragançana nunca foi tradição a ordenha de ovinos. No entanto, devido à procura e valorização do leite
na década de sessenta, os ovinos começaram a ser ordenhados nos concelhos de Macedo de Cavaleiros, Mogadouro e Vimioso.
Produção de lã: esta aptidão é de importância reduzida, sendo atualmente utilizada pelos artesãos no fabrico de algumas peças de vestuário. Caracterizam-se por velos com madeixas churras, compostas por filamentos curtos e compridos."(UTAD, 2005)
Os carneiros de cornos retorcidos
No meio do rebanho destacavam-se dois carneiros com grandes cornos retorcidos que deram uma trabalheira para se deixarem fotografar e sem nos deixarem alcançar o ângulo e a melhor foto pretendida.
Créditos e Fontes pesquisadas
Texto: Ondas da Serra com exceção do que está em itálico e devidamente referenciado.
Fotos: Ondas da Serra.
Referências bibliográficas
UTAD (2005) de Gado Transmontano, O. C. A raça ovina Churra Galega Bragançana.
Almeida, M. A. P. D. (2002). Pastor. História do Trabalho e das Ocupações. Vol. III. A agricultura: dicionário das ocupações, 230-237.
Agradecimentos
Agradecemos ao pastor transmontano António Júlio Pereira pelo tempo que nos despendeu e às gentes de Maçores que tão bem nos receberam e onde havemos de regressar.