Entrevista a um agente da Polícia de Segurança Pública
O Ondas da Serra já entrevistou profissionais de vários ramos da sociedade, artistas, barbeiros, calceteiros, carpinteiros navais, cutileiros, escritores, fotógrafos, músicos, padeiros, pescadores, pintores, políticos e professores. Através das suas histórias podemos conhecer um pouco das pessoas que fazem mover a sociedade, embora muitas vezes não sejam assim reconhecidos pelos poderes que os deviam ajudar.
Chegou agora a oportunidade de ficarmos a conhecer um pouco da vida profissional de um polícia. Ao contrário dos outros a conversa teve que ser sigilosa para o proteger de processos, porque não se podem expressar livremente.
Durante este ano de 2023, deslocamo-nos pela manhã em trabalho, a um grande evento no norte do país. No local tivemos problemas com o estacionamento, que só foi conseguido com ajuda de um agente ali colocado. O dia estava um sufoco e já no final da tarde ficamos surpreendidos pelo mesmo polícia ainda estar no local. Nós tentamos saber o que se tinha passado, a sua cara desanuviada já não era a mesma e tinha dado lugar a um fechado rosto cansado. Segundo ele, o evento não tinha terminado à hora prevista, contingências desta vida que já lhe tinham acontecido antes.
Foi desta forma que lhe perguntamos se queria posteriormente falar-nos sobre a sua experiência e agruras da sua profissão. Depois de algumas reservas iniciais e promessa de não ser revelada a sua identidade, aceitou contar-nos a sua experiência na carreira de Agente da Polícia de Segurança Pública.
As dificuldades profissionais da vida de um polícia
Ondas da Serra: Senhor Agente pode fazer-nos uma breve apresentação pessoal?
Polícia: Sou quarentão e transmontano com orgulho e polícia há mais de 20 anos na PSP. Sou divorciado e tenho um filho maior desse casamento que já acabou os estudos na universidade e fez o estágio e anda agora à procura de casa e trabalho.
Escolheu ser polícia por vocação ou foram as contingências que o levaram para esta profissão?
Acho que foi a vida porque a minha terra é muito isolada, não há muito emprego e não queria trabalhar na agricultura como os meus pais. Quando era jovem comecei a ver familiares partirem para fazerem vida na Suíça e França. A grande parte dos meus amigos depois de fazerem a tropa, que na altura era obrigatória, entraram na PSP, GNR e alguns na PJ. Haviam alguns que os pais tinham posses e foram para a Universidade e hoje são médicos, advogados e até políticos. Eu fui paraquedista com muito orgulho e no final concorri para a PSP e GNR, tendo entrado na primeira.
Onde é que foi colocado e como foi o seu início na carreira na polícia?
Eu fui colocado ou melhor descarregado em Lisboa, não tive apoio para alojamento, orientação ou qualquer tipo de informação. No dia da apresentação, depois duma reunião matinal fui colocado numa Esquadra com bairros de lata muito perigosos. Os primeiros meses foram muito duros, sentia-me completamente perdido, não conhecia a área, as ocorrências eram muito perigosas e quase todos os dias alguém andava aos tiros.
Eu comecei por dormir num quarto rafeiro, comia como calhava e tinha que apanhar transportes porque ainda não tinha carro. Muitos colegas logo nessa primeira semana desistiram, agora se o quiserem fazer têm que indemnizar o estado em mais de cinco mil euros pela formação recebida.
Agentes no princípio da carreira que desistam da PSP pagam 5 mil euros de indeminização
Depois de assentar e conhecer alguns camaradas nas mesmas circunstâncias, acabamos por alugar um apartamento e dividir as despesas o que ajudou a adaptar-me aquele serviço e à cidade. Se no começo estranhei depressa comecei a gostar de Lisboa e da sua vida noturna. Foi neste ambiente onde conheci algumas “cachopas” (risos) e aquela que viria mais tarde a ser a mulher com quem estive casado durante 12 anos. O que me custava mais era não poder visitar os meus pais com mais regularidade e conviver com os meus amigos e primos.
Que serviços é que já fez na polícia e qual gostou mais?
No princípio comecei por fazer de sentinela à Esquadra, condutor e arvorado do carro de patrulha. Passados uns meses aceitei o convite que o comandante me fez para ir para as brigadas à civil à experiência. Ainda hoje me pergunto o que é que ele viu em mim, eu falava pouco, não queria confusões, mas de burro nunca tive nada.
Acabei por gostar daquele serviço, andava sem farda e podia ir ver mais vezes à terra ver os meus velhotes. Por outro lado acabei por perceber que até tinha jeito para a coisa porque os “mitras” (criminosos), nunca me identificavam como polícia e quando o faziam já era tarde demais e já estavam presos por droga ou terem fanado uma carteira. Com sorte ou não parece que eu tinha o dom de cheirar caldeiradas e fiz bons serviços tendo em alguns até recebido louvores.
Mas isso foi há muitos anos, agora está tudo muito mais evoluído, as pessoas não sabem o grande trabalho que a PSP faz na investigação criminal. No entanto tive uns problemas e regressei à patrulha há uns anos.
Ainda hoje tenho saudades desse serviço, mas já não tenho vontade nem disponibilidade mental e física para o executar por causa de um problema na coluna. Por outro lado, antigamente andávamos muito na rua, agora os meus colegas têm centenas de processos remetidos pelo tribunal a seu cargo e passam a maior parte nas Esquadras a ouvir pessoas, para mim não dava.
Passados alguns anos achei que muita coisa estava mal na polícia e entrei para um sindicato onde cheguei a ser dirigente, experiência que me ajudou a entender muitas das coisas erradas que se passam nesta instituição e a razão de muitos problemas não serem resolvidos.
Durante o serviço você ou colegas seus já ficaram feridos ou tiveram a vida em risco?
Muitos polícias são agredidos, feridos, mortos e alguns suicidam-se
Infelizmente, muitas vezes, já me tentaram acertar com pedras e garrafas, tentaram agredir-me, esfaquear-me e disparam tiros na minha direção. Tenho colegas que já foram agredidos, faleceram em serviço e se suicidaram. Um deles deixou-me abalado porque era meu amigo, tínhamos uma maneira de ser parecida e partilhamos muitos valores. Acho que devo ter um Anjo da Guarda lá em cima a proteger-me a quem todos os dias rezo e agradeço por nunca ter sido ferido.
Posso depreender pelas suas palavras que é religioso?
Agora sou, mas durante uma parte da minha vida não acreditava em nada, até ter caído ao fundo do poço e Deus ter-me ajudado a levantar quando não tinha mais ninguém a quem recorrer.
Quais foram os maiores problemas profissionais que enfrentou na sua carreira até ao momento?
"Nos últimos anos, com a falta de pessoal, uma coisa que era esporádica passou a ser rotina, não respeitarem as nossas folgas"
Os maiores problemas que passei foram as denúncias mentirosas que contra mim fizeram, dizendo que tinha agredido pessoas, fiz uso da arma de fogo, fui arrogante ou mal educado, onde tinha que responder nos tribunais e internamente aos processos disciplinares.
A experiência começou a demonstrar-me que na polícia quando mais trabalhos fazemos, mais probabilidades temos de ter problemas e quando eles acontecem pouco apoio se recebe. Eu tudo o que fiz foi para defender valores em prol da sociedade e com isso só arranjei problemas.
Depois de ter sido nomeado dirigente sindical e fazer o meu trabalho da luta pelos direitos dos polícias, começaram os problemas com a hierarquia que me queria calar e isso eu não estava a contar, apesar de ter sido avisado. A pretexto de tudo organizavam-me processos disciplinares, que eram arquivados mais tarde no tribunal. Eu tinha que andar sempre com atenção, fazer tudo direitinho e isso foi-me desgastando.
Já perdi a conta às vezes que fui constituído arguido em processos internos e tribunais, mas isso agora acabou, passei a ter mais juízo, fiquei mais velho e agora já não estou nas brigadas à civil, nem sou dirigente sindical, mas ainda sou sindicalizado e vou algumas reuniões dar o meu contributo.
Outro problema que me começou a chatear, foi nos últimos anos, com a falta de pessoal, uma coisa que era esporádica passou a ser rotina, não respeitarem as nossas folgas e cortarem as mesmas para irmos para policiamentos desportivos, reuniões, formações e colmatar a escala quando alguém fica doente ou vai de férias. Se a isto juntarmos as comparências em tribunal, a situação fica complicada e não temos vida pessoal.
A PSP respeita os vossos direitos?
"Por tudo isto, por vezes sinto que sou cidadão de segunda ou terceira categoria."
Em relação aos nossos direitos a PSP faz o que bem lhe apetece, muitas vezes de forma ilegal, mas com cobertura hierárquica ou política. Por tudo isto, por vezes sinto que sou cidadão de segunda ou terceira categoria. Por exemplo, recentemente as pessoas poderão começar a pedir baixa automática até três dias, sem a necessidade de irem aos médicos, mas a nós foi-nos proibido.
Todos os dias nos cortam direitos ou colocam dificuldades e obstáculos aos que já foram conquistados, mas os deveres e exigências, esses estão sempre a aumentar.
Há uns anos fizeram muito bem provas para sermos testados e certificados a nível do tiro, agora começasse a falar que vão fazer o mesmo para a capacidade física. Enfim está tudo muito bem, não podemos ter polícias muito gordos porque podem colocar a sua vida ou dos colegas em risco por não terem agilidade física, mas não pode ser só pedir é também necessário retribuir, porque assim ninguém quer vir para cá trabalhar.
E vocês não podem reclamar para exigir os vossos direitos?
Polícias não exigem os seus direitos com medo de serem marcados pela hierarquia
Olhe minha senhora, quem for muito reivindicativo não deve vir para esta profissão. A PSP como outras instituições do género é muito fechada, quem começar a protestar muito e a reclamar dos seus direitos depressa fica marcado e a polícia tem muitas maneiras de o calar.
Pode contar-nos algumas dessas formas de impedir a pessoa de protestar?
Claro que isso não é declarado abertamente, mas vou só enumerar algumas: Pode diminuir-lhe a nota na avaliação do desempenho, nomearem-lo para serviços complicados e a horas imprópias consecutivamente, criar-lhe dificuldades quando pede excessos de serviço, sendo muitas vezes recusados e levantarem-lhe processos disciplinares, o que nesta profissão é muito fácil devido às várias competências e serviços complexos atribuídos, ninguém consegue fazer sempre tudo da forma correta.
Depois isso acarreta problemas na progressão dos escalões remuneratórios, promoções e dificilmente muda para outro serviço passando a vida na patrulha. Os que ainda vão tentando fazer alguma coisa são os dirigentes sindicais, mas esses têm bons advogados para os defender, mas é sempre uma chatice.
"Depois a pessoa atinge o limite, não tem para onde fugir e dá um tiro na cabeça."
No passado o polícia ainda podia dar parte de doente, sem perder dinheiro, quando queria desanuviar a cabeça, agora até a casa o vão fiscalizar. Depois a pessoa atinge o limite, não tem para onde fugir e dá um tiro na cabeça.
Em que consistem os excessos de serviço que nos falou à pouco?
O polícia não ganha horas extras e as que acumula em excesso tem dificuldades em gozar
Nós na PSP não ganhamos horas extras, quando por exemplo o governo decreta tolerâncias de ponto e o elemento está a trabalhar no seu turno, essas horas são creditadas para quando ele precisar posteriormente. O mesmo se aplica quando por motivos de um serviço temos que permanecer depois do final do turno de trabalho, até à sua conclusão, como por exemplo um criminoso que é apanhado a assaltar alguém.
A mesma situação se aplica quando temos que comparecer no tribunal para depor como testemunhas na hora da nossa folga, reuniões do serviço obrigatórias ou vamos colmatar na nossa folga a escala por um colega ter adoecido ou falecido algum familiar. O problema é que com a falta de pessoal é cada vez mais difícil gozar um excesso e então ao fim-de-semana ou festas é quase impossível.
Pode contar-nos quais são as ocorrências de risco mais frequente atualmente?
Violência doméstica: "São sempre situações de risco onde já tive de usar o gás pimenta e puxar de arma para uma pessoa que empunhava uma faca."
Atualmente quase todas as ocorrências são de risco, antigamente era mais calmo, mas agora parece que andam todos malucos, cheios de ódio e stress. Houve um grande aumento nas desordens nas ruas entre jovens, questões familiares, brigas entres condutores ou por causa do ruído dos animais domésticos.
Quase todos dias temos ocorrências de violência doméstica, onde temos que ir preparados com coletes de proteção e prontos a usar os meios coercivos (armas) ao nosso dispor. São sempre situações de risco onde já tive de usar o gás pimenta e puxar de arma para uma pessoa que empunhava uma faca. Felizmente que ela obedeceu às minhas ordens e não foi preciso disparar. No entanto, ele podia ter avançado na minha direção e eu tivesse que disparar para uma perna.
"Eu não vim para a polícia para ser preso, mas a qualquer altura posso cometer um erro sem querer e isso acontecer."
Nestas situações podem haver erros, movimentos repentinos e depois mais tarde o Ministério Público facilmente nos acusa e leva a julgamento, como agora aconteceu aos quatro GNR acusados de homicídio, de um suspeito que os tentou alvejar. Depois vem as averiguações da IGAI (Inspeção Geral da Administração Interna), PSP e tribunais, deturpações nos jornais e acusações criminais, disciplinares e pedidos de indemnização.
É por estas razões que os polícias atualmente tem receio de se meterem a fazer certos serviços. Acho que ou mudam este estado de coisas ou um dia Portugal deixa de ser um país assim tão seguro. Eu não vim para a polícia para ser preso, mas a qualquer altura posso cometer um erro sem querer e isso acontecer.
Mas isto ainda vai complicar-se mais, qualquer dia chegam as máquinas para filmar as ocorrência, que temos que transportar no peito. Entendo os motivos, mas o grau de dificuldade na execução do serviço fica mais difícil. No meu caso elas são agravadas pelo problema na coluna, quando estou pior tenho que levar injeções, até já precisei de ajuda para sair do banco do condutor. O médico já me disse que eu mais tarde ou mais cedo tenho que ir à faca, mas há riscos. Pelo menos já fiz o que ele pediu, emagreci uns quilos.
Senhor Agente quando veio para esta profissão desconhecia a condição policial e sua restrição de direitos?
"Temos que aceitar as particularidades da condição policial, mas com tantas exigências não podemos ganhar esta miséria de ordenado."
Muito honestamente desconhecia, eu pensava erradamente que iria ser como na tropa, não sabia que havia tanta desorganização, trabalhar em cima do joelho, falta de material, instalações em bom estado e apoio aos policiais. É verdade que nos últimos anos tem havido algum investimento em material, mas falta melhorar as nossas carreiras.
Não basta darem migalhas como as casas em Lisboa para os policiais deslocados residirem e os dos outros comandos? É verdade que temos que aceitar as particularidades da condição policial, mas com tantas exigências não podemos ganhar esta miséria de ordenado e respeitarem mais a nova vida pessoal.
Como está atualmente a evolução da sua carreira profissional?
"Eu acho que não tenho carreira quando a mesma só tem três postos, enquanto há outras com o triplo."
Se for comparar com outras dentro da PSP eu acho que não tenho carreira quando a mesma só tem três postos, enquanto há outras com o triplo ou mais. A primeira vez e última que foi promovido a Agente Principal já tinha mais de 11 anos e ainda me encontro na mesma e aqui devo acabar. Quando entrei para a PSP tinha a expetativa de aos 55 anos de idade ir para a pré-aposentação, mas até isso acabou e agora é só aos 60, se não aumentar mais até lá. No entanto, isso não me preocupa porque eu pretendo sair da polícia e emigrar.
Se o entender podia dizer-nos quando ganha mensalmente atualmente e se está satisfeito?
"Sinto que fui enganado, tanto sacrifício pessoal, perda de laços familiares, amigos, qualidade de vida, para agora ganhar uma ridicularia."
Eu quando comecei a trabalhar ganhava cerca de três salários mínimos, agora ganho um pouco acima de um salário, cerca de mil e cem euros. Claro que sinto que fui enganado, tanto sacrifício pessoal, perda de laços familiares, amigos, qualidade de vida, para agora ganhar uma ridicularia. Eu comparo a vida que tive com a dos meus familiares que emigraram e não há comparação, fico contente por eles, mas eu só regredi ano após ano.
Em Lisboa fazia muitos gratificados que são serviços extras, cheguei a ganhar quase tanto como o ordenado. Depois de casar esse dinheiro ajudava a pagar as prestações do apartamento, mas só o entendi mais tarde, roubava muitas horas de lazer, estar com a minha família e quase não vi o meu filho crescer.
Pode explicar-nos a questão dos gratificados?
"Muitos polícias, como têm fracos salários, fazem estes dois tipos de serviço para compor o ordenado."
Os gratificados ou remunerados como também são conhecidos, são divididos em duas categorias. Os obrigatórios, quando são espetáculos públicos, como os desportivos, onde se enquadram o futebol, ciclismo, atletismo, etc. Os particulares, para os policiais que se voluntariam para este tipo de serviço, como fazer segurança aos centros comerciais e hipermercados.
Muitos polícias, como têm fracos salários, fazem estes dois tipos de serviço para compor o ordenado. Contudo o mesmo é feito, como foi o meu caso no começo da minha vida de casado, em detrimento da família e horas de lazer.
Não sendo a única, esta situação contribui para a divisão familiar, que em conjunto com outras como por exemplo a dificuldade de marcar férias com o cônjuge, causam problemas e concorrem para a elevada taxa de divórcios nesta profissão e em alguns casos se calhar alguns suicídios.
Depois temos a questão do descanso, como é que um elemento que fez 4 horas num remunerado e depois vai fazer mais 8 horas no carro de patrulha pode estar em condições, quando isso se prolonga por vários meses, anos e décadas? Depois acontecem os acidentes ou falta de paciência para os cidadãos, como eu já vi acontecer.
Por outro lado, alguns destes serviços na minha opinião são degradantes e não dão uma boa imagem da polícia, como estar na estrada junto dos senhores que andam a colocar a fibra ótica.
No começo desta profissão não pensava nisso, mas sei agora que isso está errado. Os policias tem que ganhar um ordenado condigno de modo a não terem que fazer este tipo de serviço, no máximo admito que faça os obrigatórios, mas não pelo preço ridículo que pagam atualmente.
Eu agora já não sou voluntário, mas mesmo assim tenho que fazer os obrigatórios e muito raramente tenho um fim-de-semana livre, ou são grandes jogos de futebol ou provas de atletismo, enfim aparece sempre qualquer coisa, por isso raramente faço planos para os mesmos, só nas férias ou à semana.
O ordenado que ganha permite pagar todas as despesas?
Não é fácil mas permite porque vivo sozinho e sou poupado, mas só com o ordenado não conseguia economizar. Eu como muitos colegas fazermos uns serviços por fora sem a polícia saber, para ganhar uns trocados, há repositores nos hipermercados, pintores, condutores, construção, serralheiros, coisas que as pessoas já faziam antes de vir para a polícia. Depois há aqueles mais complicados que não devia acontecer como seguranças a bares e discotecas.
A dada altura da sua vida pessoal teve problemas, estiveram relacionados com a polícia? Quer falar disso?
Posso sem problemas. A vida policial sem eu saber foi-me transformando numa pessoa mais séria, fria e dura. Temos que construir defesas e vestir uma armadura para nos ajudar a sobreviver a tantos ataques que somos alvo, interna e externamente. O que eu nunca pensei foi que o maior problema viesse do interior do meu lar.
Começaram a passar-se situações estranhas e soube que algo se passava no meu casamento. Todo aquele tempo que eu passava no serviço, muitas vezes voluntariamente para apresentar resultados, os gratificados, os natais e outras festas que não passava com a família, se calhar as minhas mudanças de humor, talvez me tenham afastado das pessoas que eu mais gostava e eram o meu porto seguro.
No entanto, eu trabalhava muito para dar uma boa vida à minha família. O meu pai sempre trabalhou bastante, mas a minha mãe sempre o respeitou. Agora o mundo está mudado, há os telemóveis e redes sociais que eu não uso e que mexem com a cabeça das pessoas.
Há um ditado que diz que o dito cujo é o último a saber, mas no meu caso eu soube logo. Claro que essas desconfianças que se vieram a justificar causaram discussões, mas essa pessoa, talvez aconselhada pelo seu defensor, apresentou queixa contra mim por violência doméstica dizendo falsamente que tinha sido ameaçada de morte e um chorrilho de mentiras.
Um dia fui chamado ao gabinete do comandante e tiraram-me a arma e puseram-me a fazer serviços administrativos fora da minha antiga equipa. A justificação que me deram foi que temiam que pudesse fazer algo contra mim ou contra a minha ex-esposa. O mais estranho disso tudo é que eu continuei a ter acesso a armas e sabia onde as obter, mas nunca me senti tentado a fazer algo contra ela.
Foi o início do meu calvário que durou alguns anos. Como nada foi provado, mais tarde o processo foi arquivado e devolveram-me a arma, mas o mal estava feito.
Durante essa fase negativa alguma vez pensou em suicidar-se?
"A ideia de acabar com tudo começou a entrar-me na cabeça, estava farto e nada me motivava."
Você é a primeira pessoa a quem vou contar isto, pensei. A minha vida deu um trambolhão, o clima naquele apartamento ficou insuportável, pelo que segui o conselho da minha advogada e foi-me embora. Foi difícil porque fiquei sem poder conviver com o meu filho, mas se lá continuasse ainda poderiam ser inventadas mais mentiras contra mim e muitas vezes era provocado. Também se não o fizesse mais tarde o tribunal assim o determinou. Muitos dos gratificados que fiz em Lisboa foram para pagar as suas prestações.
A pessoa com quem a minha ex passou a relacionar-se, mais tarde acabou por ir para lá viver, enfim, junto com o meu filho, foi difícil de engolir. No meio de tudo aquilo eu e o meu filho é que fomos as vítimas.
Por tudo isto eu já não andava bem e foi nessa altura que o meu pai faleceu e entrei em profunda depressão. Ele tinha muita sabedoria, trabalhava de sol a sol, nunca gozou férias, veio uma vez a Lisboa e disse que não gostava. Um dia durante o namoro ele conheceu a minha ex e ao fim de pouco tempo percebi que ela não o convencia. Ainda recordo umas palavras que me disse, "Rapaz tem cuidado, olha que aqui na terra há boas moças, com a cabeça igual a ti." Depois de casar nunca lhe vi mostrar os dentes ou abrir um sorriso para a nora, acho que soube antes de mim o que me esperava.
Esse sofrimento que passei e angústia eram tão fortes que perdi a vontade de viver. A ideia de acabar com tudo começou a entrar-me na cabeça, estava farto e nada me motivava. A ajuda veio de onde eu menos esperava, um colega evangélico, sem nada saber, um dia durante um turno noturno passou o serviço a falar comigo sobre o meu problema, que já era conhecido em toda a Esquadra, tendo eu ficado admirado com a sua sabedoria nunca revelada.
Nem todos os colegas foram compreensivos e ouvi bocas e comentários depreciativos ou gozo, por vezes às escondidas, que nem quero relembrar porque ainda mexem comigo.
Segui um dos conselhos do meu colega e fui a uma psiquiatra muito experiente em trabalhar com polícias, que me medicou e deu baixa. Ainda hoje tenho consultas, mas mais espaçadas no tempo. Mas efetivamente a coisa esteve por um fio, por isso digo às pessoas que podem ter estas más ideias de atentar contra a própria vida, procurem ajuda nos psiquiatras, psicólogos ou religião, que tudo se resolve com o tempo e há sempre um caminho.
E a instituição policial não o ajudou e o encaminhou para as consultas?
"Na PSP não existe, como é obrigatório nas empresas, medicina no trabalho, podemos andar 5, 10, 20 anos sem nunca sermos avaliados psicologicamente."
O comandante tentava saber como eu andava e chegaram a perguntar-me se eu queria ir à consulta, mas eu sou bom a camuflar sentimentos e dizia que não precisava. Por outro lado também tinha deixado de acreditar neles depois de tudo o que se tinha passado. Eu também tinha receio se o fizesse nunca mais me devolvessem a arma para poder regressar ao serviço, fazer gratificados e ganhar todos os subsídios.
Por isso muitos andam neste tipo de consultas sem darem conhecimento, inclusive na minha médica que só há uns tempos me contou que tem cerca de 11 e por isso que tem dificuldades em marcar consultas, de forma a que não se cruzem nos corredores ou sala de espera.
Na PSP não existe, como é obrigatório nas empresas, medicina no trabalho, podemos andar 5, 10, 20 anos sem nunca sermos avaliados psicologicamente. A PSP não faz ideia dos problemas que alguns agentes têm e como os escondem.
Como é que evoluiu a sua vida depois destes problemas?
Olhe eu tinha que sair de Lisboa e pedi transferência para um comando do norte do país, tinha de afastar de todas aquelas recordações e recomeçar de novo. Quando me calhava estar com o meu filho, marcava um encontro em Lisboa num jardim, não conseguia ir sequer ao prédio do apartamento.
Quando fui transferido passei a visitar mais a minha mãe que está num lar. Eu fiquei com a antiga casa dos meus pais, que ando a recuperar conforme as minhas possibilidades.
Porque é que não regressou ao serviço nas brigadas que gostava?
Porque nunca mais fui convidado, concorri ou demonstrei interesse. Por outro lado, neste momento ainda não perdoei as traições que me fizeram, mas já não penso tanto nisso. Não esqueço as mentiras que a minha ex inventou para levar a água ao seu moinho e como a polícia me tirou do meu serviço e todos os processos que me organizou.
Eu tenho que agradecer à advogada do meu sindicato que conseguiu que tudo fosse arquivado, mas foi uma grande batalha e tive que fazer uso de todas as minhas forças, capacidades e resiliência. No fim sinto que foi reposta alguma justiça, mas há coisas que não têm reparação.
Uma pergunta mais pessoal que pode não responder, nunca pensou refazer a sua vida pessoal com outra pessoa?
Isso está completamente fora de questão, tudo tem um tempo na vida, não me vejo a meter-me em novas aventuras, que depois podem correr mal e passar por tudo novamente. Eu agora estou bem, só quero paz e sossego. Comecei a seguir os bons conselhos que me deram e a olhar mais por mim, tenho uma alimentação saudável, bebo pouco, deixei de fumar e faço umas caminhadas.
Tenho pessoas que já tentaram, mas não estou para aí virado. A ironia disto tudo é uma delas foi a minha ex, já não está com o dito cujo e há tempos teve a lata de mandar o barro à parede, que tinha cometido um erro, pedia desculpas, tretas, simplesmente ignorei. Não a odeio, mas também já não sinto nada por ela, só tenho o respeito bastante por ser a mãe do meu filho.
As minhas prioridades neste momento são a minha mãe velhinha, mas ainda muito lúcida e o meu filho, sempre que posso passo os fins-de-semana com eles.
Pode falar-nos um pouco do seu filho?
O meu filho é um rapaz muito atinado, inteligente, estudioso, trabalhador e quase sempre sossegado como o pai. Infelizmente herdou da mãe a impulsividade que já o tem metido em problemas, mas ninguém é perfeito. Gosta da nossa terra e anda metido na juventude de um grande partido, para o que lhe havia de dar (risos), diz que assim pode ser que um dia possa fazer algo pela nossa terra e interior abandonado.
E fora do trabalho quais são os seus passatempos?
Gosto de ler o jornal, pescar, jardinagem e hortas. Há um casal que cultiva a terra dos meus pais, quando vou lá nas folgas ou férias dou-lhes uma ajuda e espero um dia ser eu a fazê-lo sozinho.
O que espera do seu futuro na polícia?
Não espero nada, só estou à espera que o meu filho, que estou a ajudar, organize a sua vida, para pedir uma licença sem vencimento, espero poder fazê-lo para o próximo ano. Tenho um primo que trabalha há muitos anos numa estufa na Suíça, que me arranja lá um lugar. Casualmente numas férias que lá passei fiz uma experiência que gostei.
Este trabalho nesta fase é o ideal para mim, não tenho que interagir com muitas pessoas, há silêncio e muitas plantas. Vou viver na casa dele e ganhar mais, para ver se termino as obras na casa da terra onde espero passar o resto dos meus dias.
O que tem a dizer aos jovens que queiram ser polícias?
"Ao entrar para esta profissão o polícia deixa de controlar aspetos importantes da sua vida e vai colocar muitas decisões que o afetam nas mãos de outras pessoas."
Se o sonho dos jovens era serem polícias devem concretizá-lo, mas não o façam sem obterem informações sobre as condições de trabalho, direitos e deveres, vencimentos, progressão na carreira e conversar com polícias mais velhos. Muitos jovens atualmente estão a concorrer à polícia pela estabilidade de um ordenado garantido, mas têm que ter consciência daquilo que vão perder.
O polícia deve saber que ao entrar para esta profissão coloca a sua vida em risco sempre que sai para a rua e a tendência é os problemas e a conflitualidade aumentarem. Hoje tudo o que o polícia faz ou deixa de fazer é filmado com todo o tipo de dispositivos, não podemos cometer erros, temos que ser máquinas e não seres humanos.
Ao entrar para esta profissão o polícia deixa de controlar aspetos importantes da sua vida e vai colocar muitas decisões que o afetam nas mãos de outras pessoas, comandante, escalador, tribunais, etc. Eu hoje acho isso muito complicado e não aceito de bom modo. Já perdi a conta às vezes que tinha coisas combinadas e tive à última da hora de cancelar e ir trabalhar desmotivado e revoltado, porque chega um dia que começa a cansar.
Eles devem saber que provavelmente irão trabalhar em escalas rotativas, dia e noite, fins-de-semana, feriados e todas as festas e feriados civis e religiosos. O polícia a qualquer momento pode ser chamado para o serviço com folgas cortadas, limitações em vários direitos, imposição de vários deveres, não pode falar livremente, tem que se comportar bem na vida civil e quando as pessoas se estão a divertir ele provavelmente irá estar a trabalhar.
Tudo isto para ganharem 900 euros e não poderem ter outra profissão. Os polícias são técnicos altamente qualificados e com muitas responsabilidades, não podem ganhar tostões. Há a ideia errada que o polícia é um funcionário público como outro qualquer, não é. Eu não posso ir a certos locais de diversão onde sou conhecido e já tive que me retirar de certos espaços quando me reconheceram como polícia e começaram a chover bocas ou abordagens mais agressivas, não era a primeiro a primeira vez que um polícia era agredido ou morto nestas circunstâncias.
O que é que mais deseja para o seu futuro?
"Agora o que eu gostava mesmo era de poder voltar a ser quem era, rir-me com vontade do fundo do coração."
Ando um pouco animado porque algumas das pessoas da minha geração que partiram para o estrangeiro têm regressado à terra onde construíram as suas casas. Aqui há dias num almoço durante as festas da terra falamos em fazer uma associação para dinamizar o lugar, fazer festas, convívios, preservar as tradições, esse tipo de coisas. Temos uma reunião marcada com o pessoal da associação da terra vizinha, que já tem sede e tudo e estão dispostos ajudar.
Eu senti um grande entusiasmo e parece que é mesmo para avançar. Mesmo que eu vá para a Suíça, posso ajudar recolhendo donativos para a construção da sede, porque lá há muito pessoal desta região. Se o projeto avançar gostava que o meu nome ficasse associado à sua fundação.
Agora o que eu gostava mesmo era de poder voltar a ser quem era, rir-me com vontade do fundo do coração, deixar de desconfiar das coisas e ser mais descontraído. Tudo irei fazer para resgatar um pouco da pessoa que já fui e se perdeu pelo caminho.
A última vez que estive com o meu primo na Suíça e uns amigos da terra que vieram propositadamente dos cantões vizinhos, foi uma grande festa e posso dizer que bebi uns canecos, recordamos coisas da minha infância e juventude que eu próprio tinha esquecido e até por vezes nem me reconheço nelas, por umas horas esqueci tudo e eu preciso disso na minha vida.
"Acabo dizendo aos jovens que concorrer à polícia é um passo que deve ser muito bem pensado, repensado e ponderado, porque a vida vai mudar radicalmente, as responsabilidades aumentarem e a juventude acabar num instante."