Quem é de Santa Maria da Feira e dos lugares em redor da terra que o viu nascer para a modalidade Travanca, sempre se habitou a ver este homem alto, humilde, a pedalar na sua bicicleta, alheio ao tempo, as circunstancias, sozinho ou acompanhado. O rosto espelha já a idade, mas as palavras que saem do interior são as mesmas de um jovem que ainda continua a escalar montanhas.
Escolhemos este homem como exemplo para os mais novos, nesta rubrica que inauguramos “Para que não se esqueçam de mim.” Este artigo irá ser divido em duas partes.
Pode fazer-nos uma breve apresentação pessoal?
Eu nasci precisamente nesta terra Travanca – Santa Maria da Feira, vivi algum tempo fora daqui em Sangalhos, Angola e França, onde também pratiquei ciclismo. Entretanto andei a correr e mais tarde estabeleci-me e passei a viver aqui em Travanca e por aqui me vou mantendo, trabalhando e dando umas voltas de bicicleta de vez em quando.
Conto-nos como é que nasceu esse seu gosto para o ciclismo e com que idade começou a praticar?
Olhe o gosto para o ciclismo nasceu com um homem, infelizmente a pessoa com que ganhei esse gosto e me apaixonou e foi aí que comecei a minha carreira faleceu precisamente a semana passada com 73 anos, foi uma pessoa que me marcou bastante. Na altura não havia ninguém aqui nesta região no ciclismo, era um rapaz que se chamava Zé Vieira. Foi através dele que eu me entusiasmei porque ele era daqui da região. Eu fui à Volta a Portugal, fez-se aqui uma grande festa e a partir dai eu ganhei o vicio pelas bicicletas. E pronto foi ele que me levou para Ovarense e onde comecei a carreira e dai segui para frente.
Comecei a correr aos 18 anos e a nível oficial aos 19 anos.
As novas gerações poderão não conhecer tão bem o Joaquim Andrade por isso convidá-lo a relembrar as suas conquistas e marcos fundamentais na sua carreira de ciclista.
Eu logo no primeiro ano que foi à volta de Portugal em 1965 consegui ganhar uma das etapas mais difíceis de Chaves a Bragança, com cerca de 150/160 km. Foi uma etapa com muito calor e muita montanha, eu consegui chegar à meta com sete minutos de avanço. Foi uma etapa muito dura, até deu uma queda a cerca de 70 km da meta, aquilo chegou tudo em grupinhos, inclusivamente os três primeiros a seguir a mim, eram precisamente corredores famosos, chegaram distanciados, eram eles o Peixoto Alves, Mário Silva, João Roque creio eu.
Este grupo também chegou com um avanço dos outros ciclistas. Foi uma etapa que fiquei muito satisfeito, muito alegre porque era o primeiro ano e ganhar uma etapa na Volta a Portugal não é para qualquer um.
Eu ainda me recordo nesse ano, que havia a aldeia da Volta a Portugal. Os corredores não iam para hotéis, ficavam nessas aldeias, nós dormíamos numas tendas, era muito bom porque não precisávamos de estar a deslocarmo-nos, tomávamos banho em locais próprios e estávamos ali todos em convívio uns com os outros. Claro que as equipas estavam separadas umas das outras eu recordo-me que eu ainda era novo e os ciclistas mais antigos das equipas grandes dizer mesmo à minha frente que não passava de amanhã, como eu tinha ganho aquela etapa muito desgastante, no dia seguinte era uma etapa para a Guarda muito dura e longa. Eu consegui fazer o oitavo lugar nessa etapa, aquilo até ainda me deu mais força, ouvi-los dizer aquilo que amanhã já ia para casa. Eu não fui para casa, mas alguns deles foram, mas eu não. A partir dai comecei a ganhar o respeito dos outros ciclistas.
Nesse ano ganhei uma etapa não ganhei mais nada, mas fiquei bastante moralizado, ganhei nome, as equipas pretendiam-me embora naquele tempo agente não pudesse mudar de equipa. Estive dois anos na Ovarense até o clube acabar com o ciclismo. Depois desta equipa foi para o Sangalhos onde estive vários anos, porque nesse tempo, antes do 25 de Abril não podíamos mudar de clube. Nós estávamos sempre amarrados à mesma equipa e não podíamos sair para outra. Havia muitas equipas interessadas em mim, inclusive equipas grandes, mas eu tive que me manter por lá.
A partir dai eu fui sempre um corredor de primeiro plano, batia-me sempre com os grandes corredores, portanto estou muito satisfeito pela carreira que tive.
Acabou um dia por ganhar uma Volta a Portugal.
No ano de 1969 ganhei a Volta a Portugal. Cheguei Alvalade com a camisola amarela, mas o falecido Joaquim Agostinho nesse dia tirou-me a camisola, mas depois veio acusar doping e passados dois dias eu já era o vencedor da volta. Oficialmente só passado um mês ou um mês e meio é que foi homologada. Tinha perdido a etapa final que era um contrarrelógio para ele por uns segundos.
Já nos disse que correu em Portugal, mas teve algumas experiências no estrangeiro?
Sim, corri duas voltas a Espanha, uma volta à França, alias duas, mas uma em 1972 não passei do primeiro dia porque tive uma infeção por causa do selim e tive que lá ficar internado num hospital. Alias eu já lá cheguei com a infeção contraída numa prova que vim cá fazer num campeonato nacional.
Eu cheguei a França maltratado, eu corria por uma equipa Belga, estive três dias parados, fiz um prologo e aquilo agravou-se e já não prossegui a volta. Nessa volta eu estava numa grande forma e deixou-me uma grande amargura, porque eu estava bastante moralizado tinha andado nesse ano em várias corridas em França e tinha inclusivamente ganho talvez a etapa rainha duma prova que se chamava “Midi libre” *, onde cheguei também com quatro ou cinco minutos de avanço sobre os grandes corredores mundiais da atualidade, Luis Ocaña e Zoetmelk.
Eu estava numa grande forma e passados 15 dias eu ia começar a volta a França
Quando foi que abandonou a competição profissional e quais as suas razões?
Eu já nem me recordo exatamente o ano, sei que abandonei com 42 anos de idade. Eu corri salvo erro 21 voltas a Portugal, três não as completei por vários motivos, não tendo sido propriamente desistência, uma foi eliminado por causa duma má preparação.
Há pouco já nos falou daquilo que na sua carreira de ciclista recordava com mais tristeza que foi estando em forma e ter tido aquela infeção que o impediu de participar numa volta a França, mas que outros episódios o deixaram alegre ou com mais tristeza?
Eu efetivamente nessa volta estava muito moralizado não tinha medo de me bater com qualquer um deles e já era muito respeitado no plutão internacional e além de ter ganho o Midi libre, também ganhei uma prova que era o grande teste para a volta a França que era a corrida “Dauphine Libere”. Nessa prova eu cheguei a estar cá atrás com o Joaquim Agostinho, com oito ou nove minutos de atraso, a certa altura eu arranquei, faltavam ainda duas montanhas muito duras, iam 14 ciclista na frente já com alguns minutos e eu só não apanhei os quatro da frente, ultrapassei-os a todos e fiz uma etapa fenomenal nesse dia.
Essa prova tinha muita montanha e é onde se disputa geralmente a volta a França, uma montanha chamada o "Galibier" e o "Tour Medley". Eu fugi e disse Agostinho que ia atacar e ele disse que era muito difícil, eu arranquei e ganhei minutos a toda agente.
O ano mais importante foi quando ganhei a Volta a Portugal por vária razões, além de ter ganho essa volta, praticamente ganhei tudo, foi rei da montanha na Volta a Portugal, campeão nacional de pista, campeão nacional de rampa. Nesse ano quando andava na Volta a Portugal tive a noticia que tinha nascido o meu filho mais velho, portanto foi uma alegria muito grande nesse mês de agosto de 1969.
Apesar de já estar retirado sabemos que ainda faz algumas provas para veteranos, pode falar-nos um pouco sobre isso?
É assim para todos, agora há aí umas corridas seguindo uma moda que veio do estrangeiro. A primeira prova que participei foi no estrangeiro, organizada pelo Belga Eddy Merckx, que tem precisamente a minha idade, mais novo dois dias. Eu tive o prazer de correr com ele e há cerca de sete anos fizeram uma prova em Évora com o nome dele, “Grande Fundo Eddy Merckx”.
Está muito na moda agora no ciclismo os “Grande Fundo” e “Médio Fundo”, estão a ser feitas muitas corridas sendo para toda a gente desde os 17 anos até ao 70 e mais anos, não tem limite de idade, podem alinhar pessoas com 80 anos. Há uma organização onde está o Manuel Zeferino, que organiza para todos os escalões de 5 em 5 anos, há outas em que é 10 anos.
Eu foi então correr essa prova a Évora, eu por acaso trabalho em bicicletas e estava com a ideia de montar uma bicicleta com a marca Eddy Merckx. Em Évora o Eddy Merckx trouxe consigo os companheiros que na altura trabalhavam para ele, belgas e holandeses, eu corri e conhecia muitos deles. A organização da prova de Évora convidou-me para eu lá ir por causa das bicicletas e jantar. Mas eu ao saber que iria haver aquela prova também quis participar na corrida.
Eu quando deixei de correr ainda ia fazendo algumas brincadeiras. Eu foi então correr a Évora, andei bem e até foi acompanhado pelo meu filho e outro colega. Eu não sabia o que era o “Grande Fundo”.
Eu fui selecionado para ir ao mundial, que por acaso seria na Bélgica, aquilo faz parte dumas tantas provas que se fazem em vários países. Mas eu depois como estava sozinho acabei por não ir, a prova até ia passar num percurso que tinha corrido Liège – Barton – Liège. Eu acabei por não ir e depois fiquei com muita pena por não ter ido. Eu estava selecionado porque tinha sido dos primeiros do meu escalão.
Depois começaram em Portugal a fazer essas tais provas de Grande Fundo pelo Manuel Zeferino que também ganhou uma Volta a Portugal, agora ele está dedicado a isso, este ano ele vai fazer umas cinco ou seis provas e então outros começaram a ir atrás e agora temos esta moda dos “Grandes Fundos”.
Em Aveiro ainda não ouve nenhuma do “Grande Fundo”. O Manuel Zeferino começou por fazer no Gerês, mas são provas muito duras, trazem sempre grandes corredores convidados como cabeça de cartaz, já veio cá o Miguel Indurain e o que ganhou o ano passado a Volta a França. Depois ele passou para o Douro “Douro Grande Fundo - Régua”, no ano passado foi para o Porto “Porto Grande Fundo”, começou e acabou na ponte. Já estão a alinhar cerca de quatro mil ciclistas, começou com mil e tem estado sempre a subir.
Eu tenho ido a todas que o Manuel Zeferino organiza como convidado especial e tenho o mesmo estatuto e tratamento dos estrangeiros cabeças de cartaz, sou sempre convidado para as apresentações.
No ano passado ele fez três provas, eu participei em todas, Douro, Porto (1 vez) e ao Gerês. Agora já vai fazer mais duas, em Bragança e Montemuro, na zona de Cinfães. Não vou participar na prova de Bragança porque é muita sobrecarga. Mas não vou faltar a uma prova que não me esqueci a de Évora. Fez-se aquela primeira vez, pararam e há dois anos para cá, alguém se lembrou e começaram a fazer novamente. Há que foi realizada há dois anos eu não foi, mas não faltei a do ano passado.
Este ano nem tinha falado nada e há cerca de 15 dias eu resolvi inscrever-me para lá. Quando liguei para lá para me inscrever, disseram-me que iria como convidado. A prova é no dia 08 de abril e eu já vou ser o 1088. Estas provas têm cerca de 160/170 Km.
Quando está em cima da bicicleta nessas provas renasce o bichinho da competição?
Faz-me lembrar quando corria, mas por vezes entusiasmo-me de mais, quando vou para estes provas deveria levar aquilo com mais calma, mas eu entusiasmo-me muito (Risos).
No seu tempo manteve uma salutar concorrência com o falecido Joaquim Agostinho?
Sim eramos grandes adversários, mas sempre nos demos bem, ainda me recorda umas conversas que tivemos dois ou três dias antes dele falecer e antes da partida de uma etapa da volta ao Algarve onde ele morreu, estivemos ali a falar tendo ele dito “Já estás magro e eu estou gordo”.
Nós eramos muito amigos havia a rivalidade dos adeptos, naquele tempo vivia-se muito o ciclismo, como agora o futebol. O Sporting, Porto e Benfica tinham ciclismo e nos tínhamos que os aturar. Quando íamos a Alvalade era um problema, aquilo era muito complicado para correr, nos corríamos na pista e ouvíamos de tudo, mas desde sempre me dei muito bem com ele e foi precisamente quando ele morreu que eu deixei a minha carreira, aquilo afetou-me bastante. Eu já estava em fim de carreira, já estava com ideias de abandonar e nesse ano já não corri a Volta a Portugal, fiquei completamente desmoralizado.
Nos sabemos que ele faleceu porque na altura ainda não havia uma grande cultura de segurança como usar capacetes, coisa que o Joaquim Agostinho não era muito amante. Como está o panorama atualmente?
Agora está muito melhor, eu já o tenho dito muitas vezes que o Agostinho hoje não tinha morrido, além de haver maior segurança, utilização de bons capacetes, transporte para um hospital em caso de acidente, melhor medicina e apoio médico.
Final da 1 Parte
* "El Gran Premio de Midi libre"