Um dia de pesca da "Companha Jovem" com Arte Xávega na Praia do Furadouro em Ovar
Ainda dormia a noite às cinco da madrugada, quando fomos encontrar despertos pescadores acocorados junto da lota, na zona norte da Praia do Furadouro em Ovar. Com o firmamento pontilhado, sibilando uma doce brisa, a lua oferecia a sua bondade olhando com espanto o nosso mar esquecido da rabugice costumeira, que nem uma onda de jeito arremessava. Ao fundo os tratores já roncavam, os homens para matarem tempo davam “caluços” nas costas e riam-se da brincadeira, que foi interrompida por um que disse secamente que só admitia a partida depois de ver o peixe todo vendido na lota, eram então horas de caminharem para a praia
Dois tratores abriram caminho pelo escuro, na praia já todos sabiam o que fazer, o barco “Jovem” tinha sido aparelhado na véspera. O barco foi alinhado com o mar, os quatro homens e nós entramos. O trator empurrou o barco com dois paus, a fraca rebentação foi vencida e o motor levou a embarcação para o local da largada do aparelho.
No mar vimos um novo Furadouro, naquele julho cheio de turistas que dormiam e não faziam juízo que já andavam gentes no mar. Já há muito tempo que queríamos ter esta experiência, nós que temos um pouco de sal nas veias e antepassados no Furadouro. O mar não se fazia sentir, a sua calma, o vagar das vagas, os azuis pardos da luz ténue da madrugada, o cheiro da maresia, aquele silêncio, outro mundo se levantou a nossos olhos que iremos perpetuar nas nossas memórias.
O aparelho foi largado e logo a rede se enredou na hélice, para desespero do Mestre Ricardo Sardo, tudo parado, tempo preciso gasto. Já tinha sido a rede desenvencilhada e um pescador não calcou o remo que baixou e voltou a enredar-se na rede, definitivamente não corria bem este lanço e os ânimos exaltavam-se.
Teve o grosso remo que ser puxado para o barco para desenvencilhar o problema, tendo por fim sido lançado o aparelho. Já quando regressavam para terra repararam que um dos braços da rede tinha dado uma volta e tiveram novamente que voltar. É como na vida quando grossos mares se levantam por vezes fazem perigar o homem e há que esperar pela bonança, se chegar!
O dia começou a nascer, as redes começaram a ser finalmente aladas (puxadas) por dois tratores, homens com bordões, compostos por grossos paus ao alto, como sentinelas facínoras prontos a desancar o mar por alguma ofensa, aguardavam na praia atentos à chegada da rede para não a deixarem enterrar-se na areia e danificar-se.
O barco ao chegar à praia é segurado por cordas e puxado pelos tratores, há duas secas fortes pancadas que temos que estar de atalaia para não sermos jogados às águas, a da rebentação e quando a máquina puxa com força o barco que serpenteia loucamente e manda ao chão até o mais robusto pescador. Eles olhavam para nós divertidos e parece surpreendidos pela ousadia de os acompanhar, disseram-nos que outros têm medo.
As cordas da rede são puxadas, pelas máquinas de dois tratores, o saco com peixe chega à praia, não foi grande a primeira pescaria. O saco é cortado, o peixe escolhido e levado para a lota. A escrivã na praia faz a contabilidade e todos sabem o que fazer, não há perguntas, são muitos séculos e gerações que tornam estas lides fáceis para quem nasceu neste meio do mar, peixe e sal.
O barco é novamente aparelhado e faz-se ao mar para um segundo lanço que corre sem sobressaltos e o saco trás mais peixe. A esta hora já os banhistas chegavam para ver ou comprar o pescado, observar ou tirar fotografias. As gaivotas também já tinham acordado e comiam os peixes pequenos ou roubavam os maiores sempre que podiam ou lhes era arremessado pelo pescador, por não ser vendável ou estar estragado.
“Esmoriz Manhã. Primeira ida ao mar das quatro e quarenta e cinco minutos. Um serouqueiro do sul que envolveu de bruma a noite acaba de desaparecer. Mas da névoa ficou névoa misturando-se ao azul e a frescura que dilata os pulmões e inebria. Um rapaz, no alto da duna, sopra o búzio com as bochechas cheias, chamando a companha para a pesca. O barco está pronto. Uma esteira de varas, duas juntas de bois para o puxar, homens nus metidos na água e agarrados às cordas, e a onda que salpica e os alaga. Entra para dentro acompanha. Refervem as ondas que o sacodem lá no alto... Os fortes rapagões agarram-se aos quatro remos, a proa alvora... É este o momento angustioso, enquanto se não safam da cova do mar." (Brandão, 1923)
História das Companhas na costa de Ovar
"Na segunda metade do século XIX, já laboravam na costa de Ovar, várias companhas de pesca e havia muitos mercantéis e mercantelas a negociar para vários pontos do país, especialmente para o Douro, como atrás referi. Mas o trabalho dessas artes na costa de Ovar é muito mais antigo, visto que existem registos de 1654 a 1975." (Neves, 2009)
Só a título de exemplo no século XIX, no ano de 1834, só no Furadouro existiam cinco companhas, a seguir referidas: Companhas do Guerra, Manuel Pinto, Agostinho, Panela e Santo André. (Neves, 2009)
A decadência da pesca no Furadouro
"A pesca no Furadouro e a conserva da sardinha em salmoura começaram a decair no início dos anos 40, em plena 2ª Guerra Mundial, por vários motivos, dos quais destacamos: a falta de peixe junto do litoral depois da invenção do radar, que passou a facilitar aos barcos de longo curso a localização dos cardumes (muitas vezes pescados perto da costa, a distâncias proibidas por lei), a conserva de peixe pelo frio (gelo), o início da industrialização em Ovar, em cujas fábricas o pescador passou a encontrar trabalho mais seguro e mais bem remunerado." (Neves, 2009)
O Mestre da "Companha Jovem" do Furadouro
Ricardo Sardo, com 37 anos, é o Mestre (antigamente conhecido por Arrais) da "Companha Jovem" do Furadouro, onde nasceu e reside, para os amigos é o Ricardo Gaiolas, alcunha que não o ofende, sendo da família dos “Balões” da parte da mãe e “Morais” do pai. Foi este pescador que entrevistamos que nos contou a sua história, desta companha, da arte xávega e dos problemas que os afetam.
A sua profissão principal é pescador, tendo por patrão o Paulo Xavier da Gafanha, trabalhando para ele nesta “Companha Jovem”, onde o mesmo se denomina "senhorio da companha" e na Gafanha quando chegam as traineiras ajudar a congelar o pescado. Este homem salientou que tem estas duas atividades porque só com a arte xávega não conseguia sobreviver.
Começou a trabalhar no mar com 17 anos, seguindo uma longa tradição familiar que já veio dos avós e seus pais, sempre no Furadouro e que trabalharam na “Companha dos Giestas”.
Fui o seu primo, Francisco Santos, mestre da "Companha Senhora da Piedade”, do Furadouro, que há cerca de 20 anos lhe ensinou tudo o que sabe sobre esta arte.
Sustos no mar e "ferrar a volta na ré"
Disse já ter apanhado alguns sustos no mar, sendo o mais grave quando parte uma das cordas que seguram o barco a terra e depois têm que ir buscar a ponta perdida para voltar a amarrá-las, porque por vezes o travão do barco é uma corda pela ré. A função desta corda cuja ponta fica em terra sendo a outra desenrolada à medida que o barco navega pelo mar, estando ela amarrada à máquina do trator que funciona como travão do barco.
Caso aconteça um problema e seja preciso travar a embarcação, dão uma volta à ré com a corda para o conseguirem segurar, caso não a tivessem nunca conseguiriam segurá-lo. Com esta corda vão ao mar, conseguem largar a rede e ao vir em direção a terra, o seu travão é a rede, para o barco não deslizar, quando veem a largar o outro cabo.
Condições para irem ao mar
Estes temerosos homens vão ao mar no verão com 1,30 m de altura da vaga, podendo arriscar um pouco com 1,40 m. Quando está nevoeiro, ou o mar muito ruim não se arriscam.
"—Eh arrais, carago, a maré é agora!—diz o João Custódio, revezeiro.
O arrais segura a corda, que é o único leme deste barco. Tudo consiste em saber «ferrar a volta na ré» para o livrar do vagalhão — tudo consiste em destreza e pulso, senão o barco sacudido enchese de água e vira. Dois homens, os caladores, ajudam-no a soltar o extenso cabo enrolado à popa, que nunca mais larga da mão. Num instante se livra da onda que quebra, mas a manobra é complicada.
O barco tem quatro remos nos quatro bancos: o do castelo da proa, o do remo da proa, o do remo da ré e o do castelo da ré. A cada um destes pesadíssimos remos se agarram quatro homens de pé nas estorveiras, que ficam nos intervalos dos bancos, seis sentados e ainda outros, os camboeiros, puxando os cambões — todos ao mesmo tempo, todos com o mesmo ritmo. O revezeiro, que ordena a saída para o mar, manda também em cada remo. Na parte mais delgada remam os caneiros, que trilham o remo e fazem a voga, ajudados pelos segundos.” (Brandão, 1923)
A “Companha Jovem” de Arte Xávega na Praia do Furadouro em Ovar
Esta companha é do senhorio Paulo Xavier, da Gafanha, nasceu no Torrão do Lameiro, tendo se deslocado para o norte da Torreira e chegado por fim ao Furadouro. Foi já neste concelho que eles disseram ter pedido ajuda à Câmara de Ovar, para a construção de uns armazéns e como não obtiveram qualquer apoio, foram para São Jacinto. Nesta altura o município vareiro pediu-lhes para regressar oferecendo ajuda, mas que contínua por chegar assim como os indispensáveis armazéns.
Uma companha também tem hierarquia onde existe um Senhorio (patrão) seguido por um Mestre, o primeiro só manda no barco quando ele está parado sem ir ao mar, dizendo ao segundo quando deve começar a pescar, normalmente em abril, já antigamente assim funcionava, a safra começa cedo. Começando o Mestre a trabalhar, o patrão já não pode interferir no andamento do trabalho, pode no entanto ter uma conversar com eles se o desejar. Antigamente dado o elevando número de pessoas das companhas havia um arrais do mar e outro de terra, mas atualmente só há um.
O pessoal que vai ao mar tem que estar matriculado para poderem trabalhar, sendo função dos da terra trabalharem nos discos, cordas, pescado e aparelhagem do barco.
A safra da desta companha começa em abril e prolonga-se até final do verão de São Martinho, nos finais de outubro, princípios de novembro.
Quantas pessoas trabalham na "Companha Jovem"
Antigamente numa companha como esta trabalhavam em média cerca de 16/17 pessoas, como atualmente não há pessoal, nesta são agora somente 10/12 pessoas. A maioria das pessoas são do Furadouro, tendo também dois de Ovar e um de Cortegaça. O mais novo tem 20 anos e o mais velho é o redeiro Alberto Pinto, com mais de 80 anos.
Tipo de peixe que pescam
O peixe que normalmente pescam é carapau, sardinha e alguma lula, que é vendido em leilão na lota, antigamente era vendido à caixa, com lances de 50 cêntimos, agora é tudo ao quilo.
Normalmente fazem sempre dois laços no mar pela manhã, mas se não houver compradores só um, “Para andar a botar o pescado fora não vale a pena”.
A safra deste ano até este mês de julho está a correr melhor que no ano passado, mas eles disseram ter tido uma avarias e pararam na melhor altura, em agosto o peixe normalmente falha, mas é comum a todos.
Condições para irem pescar ao mar
“Vamos ao mar se ele deixar e não estiver nevoeiro, se a pesca agradar a gente trabalhar se não a gente para. A pesca é que manda, se não arriscar a gente não sabe o que trás. Esta arte é uma arte cega, não temos sondas, não temos nada, a gente vai, larga as redes, conforme a maré a água vaza, a gente trabalha com as águas, largamos para o mar, começamos a puxar, se cercar o peixe cercou, se não, não apanhamos nada.”
O barco Jovem embarcação em madeira conhecido por meia-lua
O barco utilizado por estes pescadores na arte xávega é uma embarcação em madeira, denominada meia-lua, que compensa a sua fraca figura com um peito emproado de valentia e enfrenta o mar com facínora coragem, acudido por uma imagem da Nossa Senhora de Fátima. O homem que talhou esta nobre criatura é o nosso conhecido Mestre do Machado, Felisberto Amador, da Tabuada – Pardilhó.
Quantos pescadores fazem-se ao mar no barco Jovem e quais as suas tarefas
O barco é operado por quatro valentes, sendo função do Mestre manobrar o leme, o homem da ré largar o aparelho e os do meio caso haja uma avaria darem uma ajuda. Efetivamente, estes últimos na primeira saída para o mar tiveram que ajudar a resolver um problema, levantando os remos e segurando o leme para desvencilhar as redes que tinham ficado presas nas pás da turbina.
Como eram construídos estes barcos antigamente
Antigamente estes barcos eram muito maiores, medindo doze metros, da proa à popa, sendo também conhecidos por meias-luas.
Que tipo de redes são usadas nesta Arte Xávega
As redes usadas pela “Companha Jovem” são de arrasto. Antigamente as redes eram feitas manualmente, mas agora já são fabricadas, embora tenham ainda a ajuda do redeiro Alberto Pinto, com 80 anos. O seu comprimento varia entre os 180 a 280 metros.
Quais são as partes principais das redes da Arte Xávega
As partes principais das redes da Arte Xávega são os braços e o saco. Os braços são usados para cercar o peixe e conduzi-lo para o saco, onde a rede é mais estreita e os impede de fugir, no seu dizer “fazendo sombra ao peixe”. O pescado vem pelo mar no meio das duas bandas de rede e quando chega a terra é obrigado a entrar para dentro do saco. Quando o peixe anda dentro das extremidades dos braços não conseguem escapar por baixo porque tem chumbo a fazer peso que pousa e vem junto ao fundo arenoso, que em conjunto com a cortiça na parte superior faz uma parede autêntica na vertical.
Que tipo de cordas são usadas
As cordas utilizadas são de polietileno, sendo as cordas principais as próprias redes, que fazem de travão do barco. As outras servem para puxar as redes para terra e também segurar o barco, por isso não podem estar em mau estado.
Arte Xávega descrita pelo Mestre
A arte Xávega foi descrita pelo Mestre Ricardo Sardo como sendo uma arte cega, por não ser usado nenhuma “artimanha” na captura do pescado, seja sonda, GPS ou outro aparelho para localizar os cardumes de peixe, “Chamamos-lhes Arte Xávega, porque a rede quando chega à praia parece uma asa”.
Os tratores vieram substituir as juntas de bois
“Os tratores vieram substituir as juntas de bois nos anos 90, ainda me lembro de ajudar e conduzir o gado a puxar as redes, às vezes até fugia da escola para andar com o gado. Normalmente eram utilizadas três juntas de bois por banda, onde estão as cordas, de um lado e outro, no total de seis e doze animais. Muitas juntas vinham de Lameiro, Marinha e Válega.”
"— Que estranho país é este onde os bois vão lavrar o próprio oceano?!... As mulheres e os almocreves excitados deitam a mão à rede e o saco sai da água, a rasto pela areia entre laivos verdes que escorrem…” (Brandão, 1923)
Estado da Arte Xávega no concelho de Ovar
“Nós sobrevivemos com muita dificuldade, as outras estão iguais, uma já acabou no Torrão do Lameiro, nós chamávamos-lhes “Os Botinhas”, em Cortegaça “O Buçaquinho”, segundo me chegou aos ouvidos está à venda. Não há ajudas e mesmo o nosso patrão também já esteve para vender a nossa.”
A falta de um armazém para albergar as artes de pesca no Furadouro
“Falta-nos um armazém para guardar os apetrechos da pesca. Temos tido problemas de furtos de baterias, gasóleo e por vezes aparecem pneus furados. Em junho furtaram baterias dos dois tratores. Ontem roubaram-nos gasolina, quando eles chegaram à praia às 05h00, mesmo estando elas guardados no interior das instalações do Clube do Furadouro.
Gostávamos de pedir à Câmara Municipal de Ovar que arranjasse uns armazéns para guardarmos as máquinas e redes durante o inverno, para não se estragarem à chuva e apodrecer as redes e o barco. Uma boa localização seria nos terrenos camarários a norte da praia do Furadouro, junto à lota. Em outros locais onde se pratica a xávega já se construíram armazéns para as artes de pesca, Espinho, Esmoriz, Cortegaça e na Torreira existem três armazéns novos.”
Qual o futuro da Arte Xávega no Furadouro
“Mais meia dúzia de anos e a arte xávega no Furadouro acaba, porque hoje em dia não há pessoal para trabalhar nisto, não há regalias nenhumas nisto, não temos direito a uma baixa, a um fundo de desemprego, a gente não tem direito a nada. O pouco que ganhamos de verão é para sobreviver no inverno. “
O que é que poderia ser feito para os ajudar
“Nos termos as mesmas regalias dos apanhadores de bivalves da ria, que têm direito a um subsídio, as traineiras têm direito a um subsídio, a única arte que não tem direito a um subsídio é a xávega. Na ria se por exemplo a apanha do berbigão for proibida por ter toxinas eles têm direito a um subsídio. A traineira acaba a safra sem pescado, tem direito a um subsídio, só a xávega é que não tem direito a nada.”
As más condições da lota do Furadouro
“Aquilo não é lota nenhuma, aquilo é um passadiço que está ali com uma barraca, mas temos aqui um mercado municipal no Furadouro onde podia ficar a lota com condições, onde há casas-de-banho, se fosse necessário botar umas arcas para se não se vendesse hoje o peixe guardava-se para amanhã. Ali não temos condições nenhumas, o peixe e as pessoas apanham sol, pó, passando lá carros e já chegamos a ver as autocaravanas a descarregar as fezes para lá. Aquilo é uma pouca vergonha. O mercado parece que só serve para a Feira da Gastronomia.”
Salvar a Arte Xávega
“É pena deixar acabar isto, uma arte que já existe aqui há muitos anos, é pena a câmara e o posto de turismo não botar a mão a isto”
A qual companha pertencia o barco “Deus te Salve”
Apodrecendo na praia, ferido de morte, com a vistosa esquelética estrutura de cavernas comida pelo tempo, o barco “Deus te salve”, não teve salvação nenhuma. Este é o futuro do barco Jovem se nada for feito para ajudar a sua companha de arte xávega, única representante dum passado que deu vida à terra vareira.
“O barco Deus te Salve era de uma companha de Esmoriz. A sua proprietária ainda pescou com ele nesta praia do Furadouro, mas parou por achar que já não tinha vida para aquilo. Mas a sua história é complicada, houve um sujeito que disse ter comprado aquilo, mas nunca pescou com ele, circulou uma história que ele nada tinha pago e que o problema andava pelos tribunais.”
As diversas funções dos homens e mulheres da "Companha Jovem"
Em que consiste aparelhar o barco
A grande maioria das pessoas da companha ajuda na aparelhagem do barco, carregando as redes, cordilhame e dos anetes ou calimbras, constituídos por grandes boias amarelas. É preciso salientar que a disposição no fundo do barco deste material é crucial para a boa pescaria e quando furiosamente é lançado borda fora é preciso cuidados para não ser por ele apanhado.
Quem foram os homens que se fizeram ao mar
Os homens que se fizeram ao mar nos dois lanços a bordo do barco Jovem foram: No leme o Mestre Ricardo Sardo, sendo auxiliado na ré pelo José Navalhadas e no meio pelo José Trinca e Jorge Pacheco, que também ajudam na função de largar o aparelho, composto por uma rede e cabos, na grade do bordão, junto dos pesados remos.
Colher as cordas para a carroça para "alar a rede" para a praia
Depois do aparelho ter sido lançado ao mar as redes são aladas (puxadas) para a praia por cordas em duas extremidades, sendo usado os tratores com olhadores para as puxarem. Estes pescadores, José Almeida, Furadouro, 58 anos e Nelson Viseu (foto), Furadouro, 36 anos, com ajuda do Mestre, tem que ter atenção para a corda estar sempre firme, para ela não deslaçar, não ir diretamente à água e magoar ninguém.
A utilização dos “Seminos” para controlar o “Alar da rede”
As redes são aladas (puxadas) para a praia por cordas em duas extremidades, sendo usado os tratores com olhadores para as puxarem. Os homens vão controlando o seu nivelamento simultaneamente usando sinais denominados “Seminos”, feitos com os chapéus levantados no ar com uma das mãos.
“Para quando se estiver a alar a rede, controlar o lanço de cada cabo que tem 220 metros, à frente ou atrás, para a rede vir direitinha e o saco chegar ao mesmo tempo à praia, para ver se bate certo, porque se vir de lado, está sujeito a partir a rede. Este é um sinal antigo, antes dos chapéus eram usadas boinas.”
O sinal de “Mandar ao Mar”
Depois dos pescadores terem largado o aparelho, no regresso para avisarem o pessoal em terra que a rebentação não iria dar problemas fazem o sinal de “Mandar ao Mar”.
Engate do gancho no barco Jovem
No regresso do barco Jovem do mar, depois de vencer a rebentação e chegar à praia, são engatados dois ganchos com cordas, nas extremidades da proa, sendo puxado violentamente para o areal.
A função dos homens com bordões
Os homens com bordões, constituídos por grossos paus, que aguardam na praia voltados para o mar à espera que venha a rede, tem a tarefa de quando chega à praia a levantar, para não se enterrar e se danificar.
Puxar as redes
As redes são aladas para terra por máquinas montadas nos tratores, mas isso não inibe os pescadores de darem uma ajuda, são muitos séculos de aprendizagem é algo que lhes está no sangue.
Saída do saco da rede com peixe
A saída do saco é sempre um momento angustiante porque como é uma arte arte cega, os pescadores esperam sempre o melhor, mas muitas vezes o pescado não dá para o trabalho. Contudo neste dia os dois lances foram satisfatórios e já tiveram pior.
Abertura do saco da rede com peixe
Depois da rede chegar à praia é necessário abrir o saco para retirar e escolher o pescado, sendo logo de seguida começado a fazer o "perfio das redes", para a preparar para o lance seguinte, que poderá ser nesse mesmo dia ou no seguinte.
Em que consiste “Fazer o perfio das redes”
Depois da rede ser puxada para terra e aberto o saco para retirar o peixe pescado é necessário voltar a cozê-lo, a isso chama-se “fazer o perfio”, que é feito habitualmente pelo Jacinto Rodrigues, homem com 76 anos, residente no Sobral - Ovar. Depois das redes saírem do mar com o pescado o saco é cortado para deixar sair o pescado, sendo depois voltado a fechar com corda. Este velho ancião contou-nos que durante a noite tinha vindo a caminhar do Sobral até ao Furadouro para tomar conta dos tratores, porque tinham andado a roubar as baterias e gasóleo dos tratores. No dia anterior tinham chegado à praia para trabalhar e não tinham combustível para trabalhar.
Inspeção das redes
Depois da rede já não ter peixe olhos experientes inspecionam a rede para ver se necessita de algum conserto.
Saco com peixe
Os pescadores juntam-se em redor do saco e vão-se aproximando para juntar o pescado e facilitar a operação da sua retirada para cima de um estrado de um atrelado.
Retirada do peixe do saco
O peixe retirado do saco é colocado em cima de um pequeno atrelado. No passado esta operação era feita em cima da areia, mas desta forma é mais fácil para os pescadores o escolherem e trabalharem, diminuindo porventura os que eram esmagados.
Escolha do peixe
Depois do peixe estar em cima dum pequeno atrelado é escolhido rapidamente por mãos experientes para ser levado para a lota.
Tratores
Os tratores que ajudam o "Jovem" e entrar e sair da rebentação e puxar as redes são conduzidos pela Albertina Ferreira, de São João de Ovar, que opera o "Mass Ferguson" e também ajuda a aparelhar o barco. O outro trator "David Brown", é conduzido pelo mestre Ricardo Sardo.
A Escrivã da "Companha Jovem"
Olhando o horizonte, a Escrivã (designação antiga) da Companha, Maria Reis, do Furadouro, sentada com os pés enterrados na areia, num gesto citadino dos que aquecem os membros em confortáveis pantufas, atenta a todos os pormenores, com caneta e papel, apontava o nome dos camaradas que estavam a trabalhar.
Depois do lanço vai à lota apontar o peixe que foi vendido e o seu preço. No final faz as contas para quando chegar ao fim-de-semana ter o dinheiro para pagar aos pescadores. Nesse dia, a contar com o vendedor, disse que eram 15 pessoas, tendo ele feito questão de nos incluir nos homens que foram ao mar. Numa folha de papel podia ler-se a data de 15/07/2022, Sílvio Dias, Ricardo, Zé, Jorge, Zé Cruz, Albertina, Fernanda, Alberto, Padrinho, Jaime, Nica, Nelson, N. Amaro, Josué, Jacinto, Carrinha.
Para quando um Centro Interpretativo da Arte Xávega no Furadouro
O Furadouro nasceu com a pesca artesanal, que floresceu principalmente entre os anos de 1800 e 1955. Esta brutal dura vida no mar, deixava em terra mulheres viúvas e filhos órfãos. Se as águas eram perigosas, em terra a fraca tenda dos palheiros pouco os protegia dos recortantes ventos. As ondas terrenas eram as das facínoras chamas que consumiam as suas vidas e fracos pertences tantas vezes como o mar.
Atualmente esta terra está voltada completamente para o turismo, idas a banhos e época balnear. Dessas memórias restam apenas nomes de ruas, como dos Bombeiros Voluntários do Porto ou Imprensa Portuguesa. Os primeiros que ajudaram certa vez de forma gloriosa a extinguir um grande incêndio de palheiros e a segunda agradecendo o peditório que o Jornal Comércio do Porto fez para ajudar estas pessoas numa outra catástrofe do gênero.
O Furadouro não pode continuar sem uma memória coletiva daquele tempo. Um Centro Interpretativo da Arte Xávega deveria aqui guardar as recordações desses tempos e cooperar com os pescadores novos e antigos para fornecerem as suas vivências. O local poderia guardar ao vivo as artes da última campanha que ainda existe ou o que parece improvável outra que venha a existir, permitindo aos visitantes contactarem diretamente com o material, falarem ou verem os pescadores a trabalhar. O Furadouro não pode continuar a ser somente praia, comércio e dormitório. O Furadouro deve ter pelo menos um armazém para a única “Companha Jovem” poder guardar as artes de pesca, barco, tratores, redes e cordas, como existe em outros pontos do distrito e concelho.
Para quando uma réplica dum palheiro no Furadouro
No Furadouro não resta um único palheiro que diga às gentes como se vivia outrora, somente em casebres, com umas poucas tábuas ao alto e chão em areia. Estes vareiros com um fogareiro ou lareira improvisados faziam comer e pegavam por vezes fogo a tudo, causando gigantescos incêndios, dado o grande amontoado destas frágeis construções e material volátil, mas era a pobreza extrema a ditar leis.
Falta aqui uma réplica que dissesse aos povos que antigamente o Furadouro era trabalho duro e condições agrestes e homenagear estes nossos antepassados. Seria também bonito ver uma recriação anual das redes aladas para terra por juntas de bois, ou a aproximação mais fiel que fosse possível realizar, para recriar esse que era o pináculo da união entre o mar e terra, pesca e lavoura, pescador e lavrador.
“Aqui o pescador vive em barracas de madeira que tem o aspeto de povoações lacustres. Em certos dias iça-se o camaroeiro e a este sinal esperado no interior das terras, começam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar, as pesadas juntas 25 de bois levadas à soga pelos moços. O lavrador associa-se ao homem do mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a alar a grande rede que se usa para estas bandas e que as bateiras lançam à água. É um espetáculo extraordinário... (Brandão, 1923)
Agradecimentos
Agradecemos ao Mestre Ricardo Sardo e aos homens e mulheres da sua “Companha Jovem”, a ajuda que nos prestaram neste trabalho e a disponibilidade para nos levarem ao mar e nos avisarem dos coices que o barco dá ao chegar à praia.
Galeria de fotos da Arte Xávega no Furadouro
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Créditos e Fontes pesquisadas
Texto: Ondas da Serra com exceção do que está em itálico, declarações do Mestre Ricardo Sardo e citações dos livros devidamente referenciadas.
Fotos: Ondas da Serra.
Livros referenciados:
Brandão R. (1923). Os pescadores / Raul Brandão. Livrarias Aillaud E Bertrand.
Neves O. (2009). A Pesca no Furadouro (1800 - 1955) / José de Oliveira Neves. Jornal João Semana.